“Não foi sua culpa!” Entenda por que a culpa pelo estupro que você sofreu é somente do agressor

Neste texto, você descobrirá por que a culpa do estupro, definitivamente, não é sua.

Regrets collect like old friends
Here to relive your darkest moments
I can see no way, I can see no way
And all of the ghouls come out to play

(Shake it out – Florence + The Machine)

Neste texto, abordarei:

  • As possíveis consequências traumáticas do estupro;
  • Como a culpa se manifesta e está ligada à cultura do estupro;
  • Quais as reações automáticas e involuntárias do organismo diante de situações de ameaça à vida (tema muito pouco discutido);
  • Possibilidades de tratamento e consequências psicológicas do trauma;

As estatísticas relacionadas a estupro são alarmantes. Em 2018, o Brasil registrou 66 mil casos de estupro. São 180 estupros por dia.

54% das vítimas de estupro são crianças de até 13 anos.

Cerca de 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima. 

Os dados foram publicados no 13º Anuário de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no dia 10 de setembro de 2019.

Foto de arquivo da autora — Apresentação de coreografia no Pole & Art Studio em setembro de 2016

Culpa

A culpa está entre os sintomas mais comuns após o estupro e pode agravar as consequências do trauma. Ela pode contribuir para o aumento da intensidade e manutenção de sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), depressão, ideação suicida e abuso de substâncias.

No Manual Diagnóstico e Estatístico — 5ª edição (DSM V), os sentimentos de culpa e vergonha foram contemplados nos critérios diagnósticos do TEPT, um dos transtornos que podem ser desenvolvidos após situações traumáticas. 

O TEPT caracteriza-se por sintomas de revivência do evento traumático através de pesadelos, “flashbacks”, lembranças intrusivas e reatividade fisiológica intensa diante de estímulos relacionados ao trauma. O que aconteceu não fica no passado, é revivido constantemente, com emoções e reações físicas semelhantes às experimentadas no momento do trauma. 

“É como se eu fosse estuprada todos os dias.”

(Relato de uma vítima de estupro)

Outro grupo de sintomas experimentado por vítimas de estupro que desenvolvem TEPT é a esquiva e o entorpecimento emocional. A vítima passa a evitar atividades, pessoas, locais ou lembranças relacionadas ao trauma e pode, ainda, ter redução no interesse por atividades que antes lhe davam prazer, além de uma restrição afetiva e uma sensação de distanciamento em relação aos outros. 

A vítima pode ter também alterações negativas nas cognições e no humor, incluindo crenças negativas sobre si, sobre os outros e sobre o mundo e pensamentos distorcidos sobre as causas do evento, culpando-se pelo que aconteceu. 

O último grupo de sintomas do TEPT engloba a hiperestimulação, onde a insônia, a irritabilidade, a hipervigilância, a dificuldade de concentração, a resposta de sobressalto exagerada e o comportamento autodestrutivo podem estar presentes.

A vítima tem dificuldades de ter a sua vida de volta por estar presa, involuntariamente, à memória tão dolorosa do passado. 

“Eu quero a minha vida de volta.” (Relato de uma vítima de estupro)

Podemos perceber como o estupro pode trazer consequências graves e incapacitantes para a vida da vítima, limitando-a ou paralisando-a.

Por mais que tenhamos várias explicações teóricas sobre os sintomas experimentados pelas vítimas, nenhuma delas é capaz de traduzir a dor que elas sentem. Há algo na ordem do indizível, relacionado a emoções e sensações físicas muito intensas que são difíceis de serem expressas em palavras.

Til your world burns and crashes
‘Til you’re at the end, the end of your rope
‘Til you’re standing in my shoes
I don’t wanna hear a thing from you, from you, from you
‘Cause you don’t know
‘Til it happens to yo
(Trecho de Till It Happens To You – Lady Gaga)

A maioria das vítimas de estupro passa a se sentir culpada por uma lista quase interminável de razões.

Essa culpa é internalizada desde a infância e intensificada pela cultura do estupro, que inocenta o agressor e coloca a responsabilidade do ato no comportamento da vítima.

Cena da primeira temporada da série The Handmaid’s Tale

Frases como “ela não deveria ter bebido tanto”, “ela não deveria ter usado aquela roupa tão curta”, “ela estava pedindo para ser assediada quando saiu de casa com aquela maquiagem”, “ela deveria saber com quem estava se relacionando”, “ela poderia ter gritado para pedir ajuda”, “não há sinais de que ela tentou se defender, então, foi consentido…” são repetidas constantemente, até mesmo por autoridades, profissionais e familiares que deveriam acolher e respeitar a vítima.

No vídeo a seguir, você encontra mais informações sobre cultura do estupro:

Em uma pesquisa feita pelo IPEA em 2013 e divulgada em 2014, 26% dos entrevistados concordaram total ou parcialmente com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”; e 58,5% concordaram total ou parcialmente com a afirmação de que “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. 

“Mas e se o diabo realmente a forçasse a fazer algo? Mesmo se pudesse provar, as pessoas a perdoariam pelo que fez? Você poderia se perdoar um dia?”
(Trecho transcrito de uma cena da série Jessica Jones)

Por que não consegui gritar ou correr?

A resposta pode estar em uma reação de defesa involuntária, a Imobilidade Tônica

Comumente, a vítima sente uma culpa que causa uma dor imensa – impossível de ser mensurada – por não ter gritado, lutado ou fugido. Mas o que ela precisa saber é que, na verdade, não tinha controle sobre isso. Não foi culpa dela! 

Se você passou por uma situação de violência sexual, onde não conseguiu sequer se mover, saiba que não foi sua culpa.

Vou explicar por que não foi e espero que você entenda e acredite nisso racionalmente – porque há explicações científicas para isso — mesmo que o sentimento ainda relute em desaparecer.  

Uma das reações comuns em uma situação traumática, porém pouco conhecida e discutida é a imobilidade tônica.  

A imobilidade tônica é uma das estratégias de defesa involuntárias e reflexivas mais frequentes de animais diante do perigo e extremamente comum em humanos.

É uma reação adaptativa de sobrevivência, com a qual alguns animais conseguem escapar de um predador, já que este pode perder o interesse na presa se achar que ela está morta.

Ela é caracterizada por inibição motora e de emissão de sons, tremor e analgesia. É como se fosse uma paralisação, um congelamento.

Vale ressaltar: é uma reação involuntária, a vítima não tem como controlar ou escolher a reação que terá diante de um estupro.

Situações traumáticas que envolvem ameaça à vida podem evocar reações de imobilidade tônica semelhantes em seres humanos. Mulheres que sofreram  estupros relatam reações semelhantes à imobilidade tônica em outras espécies.  

Em uma pesquisa com 80 mulheres vítimas de abuso sexual na infância realizada por Heidt e colaboradores, 52,5% apresentou imobilidade tônica durante o momento do trauma.

A ocorrência de sintomas de TEPT era maior neste grupo do que no grupo que não apresentou imobilidade tônica. Temos, assim, como hipótese que, entre outros fatores, a culpa que a vítima sente por não ter conseguido reagir pode ajudar a aumentar a gravidade do transtorno. 

Em outro estudo realizado por Fizman, encontrou-se que a imobilidade tônica predizia uma pior resposta ao tratamento farmacológico em vítimas de violência urbana com TEPT. Dessa forma, quem apresenta imobilidade tônica no momento do trauma, apresenta sintomas mais graves e menos chance de melhorar com tratamento farmacológico.

As pesquisas científicas sobre imobilidade tônica precisam ser difundidas e discutidas. É comum a procura por sinais de que a vítima tentou se defender para provar que houve estupro.

Não é não! 

Há algumas coisas que deveriam ser óbvias, mas não são. Então, a gente repete até que todas as mulheres sintam-se livres e seguras. Há uma ideia de que as mulheres fazem “charme”, que dizem não quando querem dizer sim, que estão fazendo “joguinho”.

Não é não!

Ainda que a vítima tenha iniciado o contato sexual por consentimento, se ela decide parar em qualquer momento, o que acontece a partir daí é estupro e não uma relação sexual.

Ainda que a vítima esteja namorando o agressor, se ela não quer o contato sexual em determinado momento, o que acontece a partir daí é estupro.        

A vítima de estupro, além de sofrer com todas as consequências do trauma, ainda tem que lidar com a sociedade que a culpabiliza. Portanto, todos os esforços no sentido de amenizar o sofrimento, apoiá-las e fortalecê-las são necessários e urgentes.

Onde procurar ajuda?

Uma rede de apoio e acolhimento é essencial após um trauma. Além disso, pode ser necessário o acompanhamento psicológico e psiquiátrico adequado.

Shake it out, shake it out, shake it out, shake it out…And it’s hard to dance with a devil on your back
So shake him off…
(Shake it out – Florence And The Machine)

Uma iniciativa bonita e necessária acontece há alguns anos. Chama-se Mapa do Acolhimento e tem o objetivo de conectar vítimas de violência sexual a profissionais especializadas neste tipo de assistência.

Nesta primeira etapa, o cadastramento de terapeutas que queiram oferecer seus serviços gratuitamente a estas vítimas está sendo realizado.

Depois, mulheres que sofreram violência sexual poderão se inscrever para receberem informações sobre estes serviços cadastrados e avaliados.

Clique aqui para acessar o site para obter mais informações!

No Rio de Janeiro, há um ambulatório de tratamento para o TEPT com atendimento psiquiátrico e psicológico gratuitos. Para mais informações sobre o tratamento e para ler artigos relacionados ao tema, acesse:

Site Oficial Trauma e Estresse – Acesse Aqui

Facebook Traume e Estresse – Acesse Aqui

Imagem do Clipe de “Till it happens to you” – Lady Gaga

Como funciona o tratamento?

No início do tratamento cognitivo-comportamental para o TEPT, realizamos a psicoeducação, onde o paciente aprende sobre o transtorno, sobre as reações comuns, sobre o porquê das mesmas.

O entendimento desses aspectos é fundamental para que o sentimento de culpa seja racionalmente questionado e, aos poucos, diminua a sua intensidade. O paciente sente-se mais compreendido e validado em seu sofrimento.

O tratamento pode, então, progredir com as técnicas de reestruturação cognitiva e exposições imaginária e ao vivo até que ele perceba e sinta que o acontecimento traumático ficou no passado.

É possível ter a sua vida de volta.

Comece entendendo que a culpa não foi sua, mesmo que ainda se sinta culpada. É só um sentimento que pesa, paralisa, lhe impede de buscar ajuda e não corresponde à realidade do que aconteceu. Você foi a vítima apenas.

Em posse dessas informações, procure apoio emocional, mesmo que seja difícil falar sobre o que aconteceu. O auxílio de profissionais capacitados pode ser importante também para que essa situação dolorosa não te impeça mais de viver bem o hoje, feliz e realizando seus antigos e novos sonhos. Vamos juntas!